Sobre lições aprendidas

domingo, 7 de dezembro de 2008


O texto que publico hoje é um depoimento
escrito por um cidadão brasileiro, morador do
Vale do Itajaí, sobre a tragédia que atingiu
Santa Catarina no último mês. Me foi enviado
pela amiga Nara Novais, como um convite à
reflexão sobre a nobreza das ações e
insignificância das vaidades humanas.
Não costumo publicar textos que não tenham
sido escritos por mim(são apenas 2 as
excessões até aqui, sendo um deles de autoria
do meu filho, Lucas), porém este depoimento
é uma lição de vida e merece ser compartilhado.


Meus amigos,
Hoje 27 de novembro de 2008 o sol saiu e conseguimos
voltar a trabalhar.
A despeito de brincadeiras e comentários espirituosos
normais sobre esta"folga forçada" a verdade é que
nunca me senti tão feliz de voltar ao trabalho.Não
somente pelo trabalho, pela instituição e pela
própria tranqüilidade de ter aonde ganhar o pão,
mas também por ser um sinal de que a vida está voltando
ao normal aqui na nossa Itajaí.
As fotos que circulam na internet e os telejornais
já nos dão as imagens claras de tudo que aconteceu
então não vou me estender narrando e descrevendo as
cenas vistas nestes dias.Todos vocês já sabem de cor.
Eu quero mesmo é falar sobre lições aprendidas.
Por mais que teorias e leituras mil nos falem sobre
isso ainda é surpreendente presenciar como uma
tragédia desse porte pode fazer aflorar no ser humano
os sentimentos mais nobres e os seus instintos mais
primitivos. As cenas e situações vividas neste final
de semana prolongado em Itajaí nos fizeram chorar de
alegria,raiva, tristeza e impotência.Fizeram-nos
perder a fé no ser humano num segundo, para
recuperar-la no seguinte.Fez-nos ver que sempre
alguém se aproveitará da desgraça alheia, mas
que também é mais fácil começar de novo quando
todos se dão as mãos.Que aquela entidade superior
que cada um acredita (Deus, Alá,Buda, GADU etc.)
e da forma que cada um a concebe tenha piedade
daqueles:
- Que se aproveitaram a situação para fazer saques
em Supermercados,levando principalmente bebidas e
cigarros
- Que saquearam uma farmácia levando medicamentos
controlados,equipamentos e cofres e destruindo os
produtos de primeira necessidade que ficaram assim
como a estrutura física da mesma
- Que pediam 5 reais por um litro de água mineral.
- Que chegaram a pedir 150 reais por um botijão de gás.
- Que foram pedir donativos de água e alimentos nas
áreas secas pra vender nas áreas alagadas.
- Que foram comer e pegar roupas nos centros de
triagem mesmo não tendo suas casas atingidas.
- Que esperaram as pessoas saírem das suas casas
para roubarem o que restava.
- Que fizeram pessoas dormir em telhados e lajes
com frio e fome para não ter suas casas saqueadas.
- Que não sentiram preocupação por ninguém, algo
está errado em seu coração.
- Que simplesmente fizeram de conta que nada
acontecia, por estarem em áreas secas.
Da mesma forma, que essa mesma entidade superior
abençoe:
- Aqueles que atenderam ao chamado das rádios e se
apresentaram no domingo no quartel dos bombeiros
para ajudar de qualquer forma.
- Os bombeiros que tiveram paciência com a gente
no quartel para nos instruir e nos orientar nas
atividades que devíamos desenvolver.
- A turma das lanchas, os donos das lanchinhas
de pescarias de fim de semana que rapidamente
trouxeram seus barquinhos nas suas carretas e
fizeram tanta diferença.
- À equipe da lancha, gente sensacional que
parecia que nos conhecíamos de toda uma vida.
- Aos soldados do exército do Paraná e do Rio
Grande do Sul.
- Aos bravos gaúchos, tantas vezes vitimas de
nossas brincadeiras que trouxeram caminhões e
caminhões de mantimentos
- Aos cadetes da Academia da Polícia Militar
que ainda em formação se portaram com veteranos.
- Aos Bombeiros e Policias locais que resgataram,
cuidaram ,orientaram e auxiliaram de todas as
formas, muitas vezes com as suas próprias casas
embaixo das águas.
- Aos Médicos Voluntários.
- Às enfermeiras Voluntárias.
- Aos bombeiros do Paraná que trabalharam ombro
a ombro com os nossos.
- Aos Helicópteros da Aeronáutica e Exercito que
fizeram os resgates nos locais de difícil acesso.
- Aos incansáveis do SAMU e das ambulâncias em
geral, que não tiveram tempo nem pra respirar.
- Ao pessoal do Helicóptero da Polícia Militar
de São Paulo,que mostrou que longo é o braço da
solidariedade.
- Ao pessoal das rádios que manteve a população
informada e manteve a esperança de quem estava
isolado em casa.
- Aos estudantes que emprestaram seus físicos
para carregar e descarregar caminhões nos centros
de triagem.
- Às pessoas que cozinharam para milhares de
estranhos.
- Ao empresário que não se identificou e
entregou mais de mil marmitex no centro de triagem.
- A todos que doaram nem que seja uma peça de roupa.
- A todos que serviram nem que seja um copo de água
a quem precisou.
- A todos que oraram por todos.
- Ao Brasil todo, que chorou nossos mortos e nossas
perdas.
- Aos novos amigos que fiz no centro de triagem, na
segunda-feira.
- A todos aqueles que me ligaram preocupados com a
gente.
- A todos aqueles que ainda se preocupam por alguém.
- A todos aqueles que fizeram algo, mas eu não
soube ou esqueci.
Há alguns anos, numa grande enchente na Argentina
um anônimo escreveu isto:
COMEÇAR DE NOVO
Eu tinha medo da escuridão
Até que as noites se fizeram longas e sem luz
Eu não resistia ao frio facilmente
Até passar a noite molhado numa laje
Eu tinha medo dos mortos
Até ter que dormir num cemitério
Eu tinha rejeição por quem era de Buenos Aires
Até que me deram abrigo e alimento
Eu tinha aversão a Judeus
Até darem remédios aos meus filhos
Eu adorava exibir a minha nova jaqueta
Até dar ela a um garoto com hipotermia
Eu escolhia cuidadosamente a minha comida
Até que tive fome
Eu desconfiava da pele escura
Até que um braço forte me tirou da água
Eu achava que tinha visto muita coisa
Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas
Eu não gostava do cachorro do meu vizinho
Até naquela noite eu o ouvir ganir até se afogar
Eu não lembrava os idosos
Até participar dos resgates
Eu não sabia cozinhar
Até ter na minha frente uma panela com arroz e
crianças com fome
Eu achava que a minha casa era mais importante
que as outras
Até ver todas cobertas pelas águas
Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome
Até a gente se tornar todos seres anônimos
Eu não ouvia rádio
Até ser ela que manteve a minha energia
Eu criticava a bagunça dos estudantes
Até que eles, às centenas, me estenderam
suas mãos solidárias
Eu tinha segurança absoluta de como seriam
meus próximos anos
Agora nem tanto
Eu vivia numa comunidade com uma classe política
Mas agora espero que a correnteza tenha levado embora
Eu não lembrava o nome de todos os estados
Agora guardo cada um no coração
Eu não tinha boa memória
Talvez por isso eu não lembre de todo mundo
Mas terei mesmo assim o que me resta de vida
para agradecer a todos
Eu não te conhecia
Agora você é meu irmão
Tínhamos um rio
Agora somos parte dele
É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio
Graças a Deus
Vamos começar de novo.
Anônimo
 
É hora de recomeçar, e talvez seja hora de recomeçar
não só materialmente.Talvez seja uma boa oportunidade
de renascer,de se reinventar e de crescer como ser
humano.Pelo menos é a minha hora, acredito.
Que Deus abençoe a todos.
Luis Fernando Gingena